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Ruído

Atualizado: 28 de jun.


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Um livro que eu quase não li


Ano passado eu me apaixonei por Fausto.

Eu fiquei sabendo que o autor de um dos meus livros preferidos gostava muito de Göethe e que um dos personagens que mais me irritou nesse mesmo livro foi inspirado por um dos personagens de Göethe que logo também ia achar um espaço considerável no meu coração, o diabo. Não "O Diabo", aparentemente existem vários, mas Mefistófeles é certamente um deles.


Eu já esperava que Fausto fosse ser uma leitura trabalhosa, para dizer o mínimo, afinal eu sou lúcida o suficiente pra entender que um poema trágico com mais de 12 mil versos rimados escritos em alemão há mais de duzentos anos não pode ser simples. Com isso em mente e tentando cultivar calma e paciência, eu baixei uma tradução moderna aleatória pro meu Kindle emprestado. Que erro. Nada tinha me preparado para a raiva que eu passei, português sabe ser pedante quando quer. Uma palavra estranha atrás da outra, versos que pareciam saídos de um experimento de linguística abstrata e eu não consegui entender uma frase sequer. Quem quer que tenha traduzido aquele texto com certeza não imaginou outro ser humano lendo ele, não era possível. Tudo ali soava intencionalmente complexo, e absolutamente além das minhas capacidades. Mas, como a gente diz, vida que segue, sempre dá para tentar de novo no futuro, ou não, também é aceitável que esse não fosse mesmo o meu tipo de literatura.


Só que tem coisas que são pra ser, e não muito depois disso eu me vi em um dos nossos sebos preferidos em Reno uma cena nada incomum, a gente passa muito tempo em sebos e na minha frente uma edição do Fausto de Göethe da coleção Grandes Livros do Mundo Ocidental, volume 47, capa dura, título dourado, cheirinho de antiguidade e imaculado. Mas em inglês. Dá para presumir que tendo me percebido incapaz de ler uma tragédia poética do século XIX na minha própria língua, eu não precisaria de muita lógica para perceber também que outra língua talvez não fosse a solução mais adequada. Mas eu amo livros, e esse era lindo e muito barato, então eu comprei ele mesmo assim. Uma vida flertando com Fausto na minha prateleira não me pareceu um absurdo tão grande.


Do sebo nós fomos para Pyramid Lake, um lago no meio do deserto que também tem um espaço especial no meu coração. Era um fim de tarde frio, cheio de passarinhos voando de volta pros seus ninhos e galhos e nós sentamos na beira da água, rodeados pelas nossas novas aquisições literárias. Porque eu achei que ia ser divertido pra mim, não pro meu marido —, eu decidi ler para ele o prelúdio do meu novíssimo livro velho. Eu sei que ele não ouviu metade do que eu li (e isso sou eu sendo generosa), mas ele ficou ali comigo e assistiu enquanto eu recitava em voz alta, então eu continuei.


Eu não sei dizer se foi a água dançando na luz dourada do sol poente ou a vista das montanhas vermelhas e rosas e dos picos nevados que cercam aquele lago mágico, mas o som daquelas palavras arcaicas flutuando pra fora da minha própria boca no ar congelado fez elas não parecerem mais tão difíceis. E então não tinha mais volta, eu fui completamente envolvida, aliás, mais do que isso, eu fui carregada. Aquele algo complexo nas rimas, no vocabulário, na construção estranha das frases de repente fez todo o sentido.


É, sim, um texto extremamente complicado, não por pretensão, mas porque trata de coisas extremamente complicadas. Coisas que em geral não se traduzem em palavras, coisas que a gente sente e na maior parte das vezes nem consegue descrever. E eu vi todas essas coisas ali, aquele inexplicável conversando com o que de mais humano encontrou em mim. Ler, inesperadamente, deixou de ser a racionalização de sílabas e de tentar organizar significados para elas. Ler virou só e puramente absorver frases musicais e seguir elas em uma viagem para dentro de mim até o momento em que elas se reconheciam em um canto e ali paravam com um eco ensurdecedor.


Alguns ecos que o mundo produz na gente nunca deixam de retumbar, como se o nosso dentro fosse um espaço infinito onde as experiências continuam reverberando enquanto a gente existir. Mas todas as experiências reverberam, não? E esses sons, esses ruídos, vivem eternamente dentro de nós, misturados com os sons antigos, recebendo os sons novos, compondo constantemente a música de quem nós somos.


Na segunda parte de Fausto, quando a coisa fica doida mesmo e ele é levado para uma esfera superior onde se disfarça de deus grego para passar um imperador para trás - afinal quando nosso melhor amigo é o diabo, por que não? , ele diz uma das coisas que reverberou com persistência em mim.



"Where thou see'st naught but lovely clarity,

Where thine own vision is enough for thee,

Thither where only Good and Beauty please and wait,

Away to solitude! There thine own world create!"

Faust 5690-5695, Göethe



(Me permitam a singela tradução:

Onde nada vês além de amável claridade,

Onde tua própria visão te é o bastante,

Lá onde apenas o Bom e a Beleza agradam e esperam,

Para a solidão! Lá teu próprio mundo crias!)


Em solidão a gente cria o nosso mundo. Mas solidão não é um estado da nossa existência, é a nossa existência inteira. A nossa realidade só existe dentro de nós, porque realidade é o mundo dançando no ritmo da nossa música. Aquela mesma música composta por todos os ecos que vivem dentro da gente. A nossa realidade é absolutamente limitada pelo nosso próprio ruído, o que a gente percebe é a nossa própria interferência no mundo. E a gente senta a sós com a gente mesmo, e assiste através de telas cheias de estática enquanto as nossas vidas se desenrolam.


A mágica que eu encontro em livros como Fausto é a mesma que eu encontro em todo o tipo de arte. Arte encontra as nossas brechas, como água que encontra toda e qualquer rachadura, entra, nos inunda aos poucos e faz a nossa solidão tão menos só.





Eu não sei tocar nenhum instrumento pra transformar minha música interna em música de verdade — quem dera! —, mas tudo que eu sinto uma hora ou outra acaba transformado em arte. Todos esses ruídos e ecos que acordaram com Fausto ajudaram a criar a minha coleção de Minis do ano passado. Os ruídos daquele por do sol em Pyramid Lake viraram Ruídos de Por do Sol (esse já encontrou uma pra-sempre-casa), os ruídos daquela viagem mágica pela América do Sul se encontraram com os meus retratos e linhas e dali nasceram Rotas 1 e 2. Algumas dessas obras ainda estão disponíveis, para ver o catálogo completo é só clicar aqui.


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Mais tarde, só bem mais tarde, eu pesquisei e achei a tradução para português da Jenny Klabin Segall, que me parece fluir do mesmo jeito que a edição que me encontrou no sebo. Pra quem quiser se apaixonar também, essa tradução existe em uma edição bilíngue (em português e no alemão original) linda da Editora 34, e que já está na minha lista de livros que preciso ter.

Eu, aliás, sempre adoro receber uma indicação de livro, o que mais tem que entrar na minha lista?

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A coleção de Minis 2024, que eu chamei de Ruídos.

Ruídos de Por do Sol
Ruídos de Por do Sol
Ruídos de Cor
Ruídos de Cor
Tapeçaria
Tapeçaria
Rotas 1
Rotas 1
Rotas 2
Rotas 2

Ruído
Ruído
Ruídos de Cor 2
Ruídos de Cor 2
Silêncio
Silêncio




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