Rotas
- Mariana San Martin
- 2 de jun.
- 4 min de leitura
Sobre dirigir, desenhar, o tempo e linhas
Em fevereiro de 2019 eu e o Matt, meu cúmplice de vida, decidimos nos aventurar em atravessar a América do Sul dirigindo, do Rio de Janeiro até Uyuni na Bolívia, depois até o Atacama no Chile e de volta. A gente queria exatamente isso, uma aventura, e nós dois amamos conhecer lugares, culturas, línguas e pessoas - clichê, a gente sabe.
Eu nunca fui grande fã desse feriado tão venerado por aqui, o tal do Carnaval, e o Matt ainda não tinha sido apresentado à uma vida baseada em glitter, então a gente carregou o porta-malas e se despediu de Copacabana por o que deveria ter sido um mês, pouco antes de o samba começar - o que é mentira, todo bom carioca sabe que o samba nunca para.
Tendo nos conhecido no Chile exatamente um ano antes e sabendo que o Matt já tinha dirigido de Santiago até o Rio uma vez, a gente realmente acreditou que não tinha muito que pudesse dar errado. Começamos jurando solenemente nunca dirigir fora de uma estrada por uma distância mais longa do que quatro horas à pé, e se esse texto fosse um filme, é bem aqui que a cena cortaria para nós dois no meio de montanhas e areia, nenhuma estrada à vista, escolhendo qual entre as vinte marcas de pneus seguir e decidindo qual pedra era grande demais pra se passar por cima com o carro. E bem assim, acreditando na sorte, chegamos a praticamente todos os lugares aonde queríamos chegar.
A gente dormiu olhando estrelas, perdeu o sinal do Google Maps, se deu conta que na verdade não era o sinal que faltava, era a estrada mesmo, viu bandos de flamingos vermelhos no céu azul, lhamas solitárias correndo, fomos acordados por asnos à espreita, a gente (eu) chorou de frio, a gente (ele) fez muitas fogueiras, quebramos a promessa das quatro horas praticamente o tempo inteiro, achamos que íamos nos perder na neblina, aprendemos a não dirigir imprudentemente em estradas de brita e que às vezes um lugar que parece perfeito pra parar e acampar é na verdade areia movediça.
Nos muitos, muitos dias, em que o Matt dirigiu, eu desenhei. Eu queria registros daquela viagem e, apesar de termos lotado todos os cartões de memória disponíveis de todos os equipamentos que a gente tinha - que não eram poucos, fotos e vídeos não me pareciam o suficiente. Eu queria participar do registro mais do que com os meus dons fotográficos não tão geniais. Eu queria registros não só da paisagem, mas do tempo, porque eu sabia que o tempo ia acabar. Eu sei que o tempo passa, eu sei que momentos viram memórias, que viram a sensação abstrata de um algo que a gente viveu e, por isso, além do tempo, eu queria registrar também o espaço, como a gente se deslocava pelo espaço e como o tempo se deslocava através da gente. E então começaram as linhas.
Há algo mais linear nesse mundo do que o tempo? A gente começa a existir, se entende como indivíduo, se inunda de desejos e impulsos, traça uma linha daqui até a meta, na direção perfeita da nossa vontade. E aí um solavanco, um buraco na estrada, uma curva mais fechada do que parecia, uma freada brusca e a linha não é mais tão reta e imaculada. A linha, aliás, tende a ser uma bagunça. Mas no tempo linear as linhas não se apagam com borrachas, a gente pode, no máximo, fazer uma linha nova, do ladinho da linha torta e esperar que dessa vez ela saia melhor. E foi isso que eu fiz, de novo e de novo.
A caneta corria para um lado e escorregava em uma curva, de volta de onde veio e afundava em um buraco, para esquerda e a gente freia, para direita e cadê o asfalto? Eu fiz trinta e um desenhos e cada um deles me mostra de novo o lugar aonde a gente estava quando aquele tempo passou. Em cada linha um pôr do sol colorido, muita areia voando - fecha rápido a janela!, avestruzes correndo no horizonte - eu nunca tinha visto avestruzes na vida, neve no topo das montanhas - não era pra ser verão?, um lago azul cristalino no fim do caminho - pelo menos é o que diz o mapa.
A parte mais curiosa de todo esse processo é que os desenhos que mais me agradam são aqueles em que nenhuma linha saiu reta. Os que vieram de estrada nenhuma para seguir, de quando qualquer direção era possível porque nenhum caminho era visível. Quando a decisão de para onde ir era só nossa e em nada dependia do que outros já tinham feito, eu entendi que estradas asfaltadas são mais estáveis, mais rápidas, mais seguras até, mas ninguém nunca vai encontrar um algo novo e singular seguindo uma estrada asfaltada.
(Nossa aventura acabou durando quase três meses. Foi difícil nos permitirem sair do Chile - pois é, sair - nosso carro estragou, foi consertado e estragou de novo e tivemos que ser resgatados pelos os nossos "pais" chilenos, que nos abrigaram em Santiago, na mesma casa aonde a gente se conheceu - eu volto pra contar essa história, prometo.)
Esses são alguns dos desenhos que fiz, e que viraram uma coleção chamada Rotas. Eu usei nanquim e em cada um eu anotei o número da estrada, o nome das cidades de onde a gente vinha e para onde a gente ia, o condado, estado ou qualquer informação que me ajudasse a reconhecer nessas linhas as paisagens que eu vejo nas nossas fotos - fotos essas que estão lá no final desse post, onde a gente já tá quase chegando.
Eu sempre soube que nenhum desses desenhos jamais seria vendido, eles significam para mim muito mais do que qualquer outra coleção que eu já fiz, mas eu escolhi três deles para transformar em reproduções, para quem quiser também compartilhar das minhas linhas e lembrar que memórias se fazem de todos os caminhos que a gente percorre, até dos impossivelmente tortos.
Eles estão disponíveis na Galeria9, em vários formatos diferentes nos links aqui embaixo.
A maioria das imagens lindas nesse vídeo e várias das fotos foram feitas pelo Matt, ele, sim, tem dons fotográficos bem mais geniais que os meus.













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Pessoal e criativo. Muito legal e interessante a forma com que conversaram todos os acontecimentos e como foi essa experiência pra você. Uma parte reflexiva e subjetiva fazendo ligação com o concreto, as marcas, os registros capturados de uma forma muito particular e preenchido de tanto sentido (e que faz pensar). As imagens e vídeos deixaram a experiência narrada ainda mais completa e aconchegante junto com as obras. Parabéns! Gosto desse formato e dessa autoexpressão. Ansioso pelos próximos ✨